sábado, 3 de novembro de 2012

ROGÉRIO CARVALHO, O CAETÉ DO WIKIPÉDIA

"Serigy lutou contra os portugueses. Os portugueses tinham um projeto. O projeto, que era ruim, daria no Brasil. Mesmo sem desconfiar que o projeto português daria no Brasil, Serigy lutou contra ele. Só por causa disso, deve ser considerado um grande sujeito. Jamais, um herói nacional."

(também publicado no Notícias Aju)


O deputado federal Rogério Carvalho quer empurrar o cacique Serigy para o Livro dos Heróis da Pátria. O pedido já foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara. O Livro dos Heróis da Pátria traz dez nomes. Entre eles Tiradentes, boi de piranha dos inconfidentes mineiros. Entre eles Zumbi dos Palmares, herói da liberdade que possuía cativos particulares. Entre eles Santos Dumont, dândi que fez de tudo na vida, menos inventar o avião. Como se vê, os heróis do Brasil são assim. Repletos de contradições que, se o tornam menos heróis, pelo menos os tornam mais brasileiros.

O cacique Serigy foi um líder indígena do século XVI.  Segundo o projeto de Rogério Carvalho, ele também foi um “guardião da soberania, da autoestima, da liderança e da luta”. É claro que ele deve estar certo. Quase todos os historiadores brasileiros dão conta de que os índios eram heróis. O problema é dizer que a soberania, a autoestima, a liderança e a luta do cacique Serigy estavam a serviço do Brasil. Porque Serigy lutou contra os portugueses. Os portugueses tinham um projeto. O projeto, que era ruim, daria no Brasil. Mesmo sem desconfiar que o projeto português daria no Brasil, Serigy lutou contra ele. Só por causa disso, deve ser considerado um grande sujeito. Jamais, um herói nacional.

Serigy viveu no século XVI. Nessa época, o “Brasil” não passava de um punhado de carolas, latifundiários e burocratas decidindo o que fazer com todo aquele mato, todas aquelas mulheres nuas e todos aqueles gentios preguiçosos e militarmente inexpressivos. Quem sabia aproveitar a vida era a tribo dos caetés. A primeira coisa que fizeram quando viram um bispo católico na sua frente foi comê-lo. O governo português não aprovou o lanche, foi à forra e iniciou uma perseguição sem precedentes aos aborígenes.

Os tupinambás de Serigy estavam no caminho. Até onde se sabe, não há registros de que Serigy estaria lendo algum tratado ufanista de Plínio Salgado ou Marcelo Déda no momento em que viu o primeiro português. Nem de que estivesse enrolado na bandeira sergipana sob o som de Kleber Melo. Ao invés disso, há testemunhos de que ele se organizou para defender, apenas, sua tribo de tupinambás. Alguns podem considerar os tupinambás como brasileiros. Os tupinambás, por seu turno, não deviam se considerar muito mais do que tupinambás.

O projeto de lei de Rogério Carvalho baseia-se em textos do historiador Eduardo Bueno e no Wikipédia. O Wikipédia é um expediente de consulta rápida para estudantes, desinformados em geral e gente que não se interessa por muita coisa, como eu. Recorrer ao Wikipédia para tentar empurrar um herói no panteão nacional é a ultrapassagem de várias dimensões de sem-vergonhice, desleixo e preguiça intelectual. Mas Rogério Carvalho e sua assessoria são incansáveis. Mal se presta atenção nisso, eles emitem um release ainda melhor.

Enquanto ecoa que aquele era o melhor projeto de lei do mundo, o material atesta que os índios de Serigy lutaram, entre outras coisas, pelo direito à terra. Eis então a grande particularidade das tribos sergipanas. Além de terem previsto o Brasil e sua soberania, eles defenderam o direito à propriedade privada séculos antes de John Locke e da Declaração Universal de Direitos Humanos.

A assessoria de Carvalho também informa que “em 1590, após um mês de batalha contra uma esquadra de guerra, os portugueses conquistaram a cidade de Aracaju e dizimaram a tribo do cacique Serigy”. A relação entre “batalha contra uma esquadra de guerra” e  “portugueses”, dando a entender de que um estava contra o outro, foi apenas um equívoco infantil de coesão. Equívoco maduro é localizar Aracaju em algum lugar do século XVI. Faltou dizer o bairro. Deve ter sido nas proximidades do Índio Palentim.

Rogério Carvalho recorre ao Wikipédia e põe Aracaju no colo de Cristóvão de Barros porque tem pressa. Sua pressa acompanha a velocidade com que o estranhíssimo episódio dos índios guarani-kaiowá tende a desaparecer do noticiário. Até lá, ele tentará cavar para Sergipe essa pequena conquista do bairrismo rasteiro disfarçada de nacionalismo e política etnicamente correta. Pelo menos, no fim das contas, Sergipe e Brasil terão um herói do passado à altura de seu presente: aquele que deu a vida para que nada disso que temos hoje pudesse existir. 

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